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Outra para a gaveta


Outra vez a mesma preocupação de sempre e de mais um dia, ou mais uma para juntar a outras tantas.
Ainda que escondida em gestos rápidos e não premeditados, ela continua aqui, a martelar, a bater baixinho, a espicaçar, a moer devagarinho. Em tudo o que vou sendo ela faz questão de ser também: primeiro a ver e depois a macerar. É ubíqua e omnisciente. Tudo o que digo, o que não digo, o que faço, o que não faço, o que penso, o que não penso ela conhece e escarafuncha. Escrupulosa na análise, não se coíbe de se mostrar e rodear e inundar todo e qualquer erro ou falha ou falta. E não se cala nunca!
Hoje vou tentar mais uma vez ignorá-la e colocá-la na gaveta, na mesma gaveta de sempre onde está tudo o que atormenta e faz barulho. Vou escondê-la, vou esmagá-la, inutilmente, tentar anulá-la ao infinitésimo de importância que lhe pertence. Tarefa inútil! Ela não se cala! Ela não para de bater, de atazanar, de atormentar… Dissimulada, vai puxando os cordelinhos das marionetas no teatro dos problemas, e não deixa que eles permaneçam quietos e adormecidos na gaveta para onde foram persistentemente colocados e recolocados. A gaveta que continua a fazer barulho. Às vezes não a ouço, (ou finjo) mas ela nunca abranda o ritmo ou volume. Às vezes a única maneira de não a ouvir é fazer mais barulho que ela, é bater com mais força e empurrar e gritar e amaldiçoar e enxovalhar e enchocalhar, até ela se calar ou eu me cansar, ou adormecermos as duas uma vez mais. Eu de exaustão, ela para retomar forças e amanhã voltar, outra vez e mais uma vez e sempre, ao ataque.
Sei que é melhor não abrir a gaveta.

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