Vejo tudo enublado, difuso… Caminho letargicamente, ensopada até à alma. E o céu continua infatigável, desabando sobre mim numa cascata melodiosamente infernal. E pesa, pesa agora nos meus ombros o céu. Empurra-me para baixo, mais baixo, mais perto do meu chão.
Vejo tudo embaciado… Sinto a água quente dos meus olhos escorrer-me pela face e a descer arrastada pela a outra, misturando-se com a tristeza. Vejo tudo embaciado… Corro por entre a cortina de água, corro, corro sem parar sem olhar para trás sem olhar para nada. Vejo tudo enublado… Os contornos da rua vão se dissolvendo, como tinta de óleo, e as cores vão se misturando numa mescla cinzento azulada. Sinto que tudo se dissolve; todo o meu ser, toda a minha alma, toda a minha angústia, tomba pela minha face, escorre pela água quente. Vejo tudo embaciado…
Corro sem parar. Corro depressa, sem notar que o faço, corro no modo automático, inconsciente. Eu corro, mas estou parada. O meu corpo aquece e a minha mente arrefece. O corpo aquece anestesiando os meus músculos e nervos, dissolvendo os meus movimentos na solução aquosa que me envolve. O corpo aquece, está quente, cada vez mais quente. Cálido está de tal forma que impede agora o contacto com a água que cai do céu. Ao aproximar-se vai evaporando por completo. A mente liberta-se aos poucos das correntes que a oprimem e solta pensamentos antes enclausurados, que agora escorrem por mim e saem em nuvens, misturados com a água do céu e com a água quente. O vapor adensa-se e vai subindo, enlevando-me. Vejo agora mais nítido, começam a aparecer progressivamente os contornos dos carros e da rua e dos prédios à minha volta… Sinto me leve… vou flutuando envolvida nesta nuvem de vapor gigante que o meu corpo emana. Olho para mim e vejo-me parada, sólida em silêncio. Já não corro, estou quieta colada ao chão. A chuva cessou e a minha essência silenciou.
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