No seu passo habitual de metrónomo, Américo seguia
para a poltrona adaptada da sua pequena sala de estar. É estranho como chamamos
“sala de estar” à divisão da casa onde se poderia fazer a maior quantidade de coisas diferentes,
mas onde não há nada que obrigue que a designemos de outra forma. E, embora
esta divisão já tivesse sido outrora um quarto e uma sala de jantar, agora era
mesmo só uma sala de estar, pois era ali que eles estavam. Também é estranho
que sendo a “sala de estar” fosse quase a divisão mais pequena da casa, se
não contarmos com a casa de banho. No fundo, não passava de um corredor ladeado
por estantes onde se encaixava a televisão, as vitrines, as gavetas das
fotografias, o armário das bolachas e dos bolos secos, as prateleiras das
fotografias e das salvas de prata, de um lado, e pelo sofá de dois lugares e
meio e a poltrona adaptada, do outro lado. Esta sala de estar, ligava então a
marquise ao corredor da entrada de casa.
E ali estava Américo, acabadinho de sentar na
sua poltrona adaptada, que não era mais do que uma espécie de espreguiçadeira
de baloiço, ligeiramente mais alta que o sofá e com braços firmes, que tornava
o sentar e o levantar menos penosos. Fora oferecida pela insistente nora Sofia,
que não se cansava de lhes encher a casa com apetrechos “muito úteis para
jovens da terceira idade”. Américo detestava a poltrona, quase tanto como a
designação terceira idade. A crua verdade é que detestava ainda mais não conseguir levantar-se
do sofá sozinho.
- Isa! Toma: bebe a tua água mulher – ordenou Américo, estendendo o copo à mulher.
- Não, já bebi há pouco. Não quero andar a
correr para a casa de banho a tarde toda. Bebe tu a tua… Já viste, hoje estão
em Viseu.
- Estou a ver, estou a ver… bah, mas é sempre
a mesma coisa, não mostram nada das terras, mostram só o mesmo de sempre.
- Shh! Deixa ouvir – ralhou Elisa.
Américo obedeceu, daí a pouco fechou os
olhos. Não precisava de ver o que já tinha visto tanta vez. Tinha os olhos
cansados de tanta repetição. Sabia bem que não levava a lado nenhum este tipo
de discussão com Elisa, até porque na realidade não se havia sentado para ver
televisão, somente para se esquecer do tempo que falta, por mais um bocado.
Também Elisa não estava sentada a ver televisão, até porque praticamente já não
via nada. Em todo o caso, era ali que se sentia bem, no seu casulo. Sentada em
cima do largo coxim de espuma memory e com nunca menos de três mantas
em cima dos joelhos e à volta da barriga. Outra almofada para recostar as
costas e, nos dias em que estava mais fresquinho, um velho xaile pelos ombros. Deixava apenas as tortas mãos de fora, uma segurando o terço e a outra repousava em cima do comando.
Américo e Elisa estavam casados há mais de 60
anos, tratando-se por isso de duas jovens tartarugas que muitas vezes desistiam
destas discussões, deixando de lutar e simplesmente se deixavam ficar de
barriga para cima até adormecerem e se esquecerem de onde estavam e como foram
ali parar. Tanto um como o outro sabia que ou um ou outro acabaria por
adormecer a meio da conversa e então optavam por não gastar energias em
discursos inúteis.
Mas nem sempre foi assim.
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