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03 março 2025

Eu não me lembro

 Eu não me lembro quando comecei a saber, pelo cheiro quente no ar, que a estação quente voltava. Aquele primeiro inspirar do ar fresco da manhã mal saio de casa, ar esse que me chega adocicado e talvez mais seco do que até então e por isso denuncie a chegada da primavera. O segundo inspirar já a perscrutar minuciosamente estes detalhes, como que a confirmar que é verdade, vai ser um dia quente de primavera, ou mais quente do que até aqui.

Eu não me lembro do percurso que fiz hoje de carro quando regressava do trabalho. Vim pelo mesmo caminho de sempre, e sei que passei por lá, mas não me lembro de tê-lo feito. Vinha, como grande parte das vezes, a contar histórias a mim mesma, a resumir o que se passou durante o dia, ou que vai ter de passar-se mais cedo ou mais tarde. A treinar um discurso, ou até mesmo a treinar um raciocínio que me permita perceber melhor como lidar com aquela situação em particular. Não me lembro por isso se o sol se pôs durante o percurso, ou se já tinha desaparecido antes de sair.

Eu não me lembro do que ofereci ao meu pai no Natal passado. Aliás, apercebo-me agora que também não me lembro do que lhe ofereci no seu último aniversário em junho. Terá sido um livro? Penso que o último livro que lhe ofereci foi num aniversário, mas também não foi no deste ano. Talvez uma camisola, ou uma garrafa de vinho. Não me lembro porque não sei se gostou ou não: não cheguei a vê-lo abrir o presente. Dei-lho no jantar que fizemos no fim-de-semana antes do Natal e ficou de abrir só no dia de Natal, como é tradição.

Eu não me lembro de quando aprendi a nadar. Sei que deveria ter cerca de 8 anos quando comecei a ter aulas na piscina do CMEFD. Aquela piscina gigante. Não me lembro da primeira sensação boa de conseguir estar, tranquilamente, na água sem estar agarrada à borda da piscina, ou com os pés a tocar no chão da piscina. Não me lembro da primeira vez em que fui só eu, sem boias, ou pranchas de espuma, a nadar uma piscina inteira até ao fim. Não me lembro da primeira vez que não fiquei atrapalhada com a água a entrar no nariz, ou nos olhos, ou nos ouvidos.

Não me lembro de quando consegui escrever o meu nome. Não me lembro se aprendi a escrever primeiro o meu diminutivo ou logo o nome todo. Sim, porque para estreantes, um nome com oito letras não deve ser fácil. Talvez tivesse ocupado uma folha A4 inteira para o escrever. Ou comecei forte com letras grandes e acabei sem espaço para a últimas que ficaram encavalitadas umas nas outras. Não me lembro se terei escrito a lápis, ou a caneta, ou a marcador. Provavelmente foi escrito a cor-de-rosa, se houvesse à mão.

Não me lembro de ter ido morar para Nisa, mas não foi lá que a minha vida começou e no entanto, todas as primeiras memórias que tenho são lá. Não me lembro de nada antes disso. Vivi lá cerca de quatro anos, até aos cinco anos de idade e não me lembro de ter tido frio, nem de dias de chuva, só sol. Não me lembro de ter começado a ir para a escola, lembro de ir somente. Não me lembro da cor da nossa porta de casa, só me lembro que a cozinha devia ser azul.

 

02 fevereiro 2025

A sala da avó Júlia


Na casa da avó Júlia havia imensos objetos antigos nas prateleiras da estante da sala. A maioria deles eram de tons escuros e alguns mal conseguíamos, pelo contorno esbatido pela penumbra, perceber o que eram. A avó Júlia mantinha sempre as cortinas fechadas, dando à sala sombria uma atmosfera de secretismo. Talvez por isso me sentisse sempre tão atraído pelo seu conteúdo e a sala era para mim como uma caverna do tesouro à espera de ser explorada.
imagem obtida com recurso a IA

Naquela tarde de domingo a avó Júlia tinha saído com a minha irmã Clara para ir comprar ovos para fazer o bolo de chocolate, e a mamã estava na garagem com o avô Zé: era a oportunidade perfeita para ir explorar a sala dos tesouros.
Entrei silenciosamente e varri a sala com o olhar em busca de algo que saltasse à vista, mas não encontrei nada de destaque. Peguei então na moldura da fotografia da avó a andar de cavalo para ver mais perto e foi quando o vi: redondo e amarelo, quase que brilhante, um pequeno porquinho mealheiro.
- Oh, olá! Como é que nunca tinha dado por ti? – disse baixinho abandando do mealheiro. Conforme o fiz ouvi barulho metálico, «ah, tem moedas» pensei, e nesse instante caiu alguma moeda ao chão.
«Plin, plin, plin» parou um pouco mais à frente dos meus pés, só que… não era uma moeda: era uma pequena chave dourada. Peguei na chave, que não era maior que o meu dedo mindinho.


Este é um pequeno texto de abertura de um conto infantojuvenil. Mais um dos meus experimentos.